Uma das condições clínicas que mais desafia profissionais da área de saúde atualmente é o Transtorno do Espectro do Autismo. O número de casos vem aumentando ano a ano de forma exponencial no mundo todo, sem que alguém possa explicar o porquê.
Em um primeiro momento se atribuiu o aumento explosivo à mudança do critério diagnóstico e à maior atenção dada aos sinais precoces de autismo, já que na classificação de “espectro” se encaixam casos de diferentes gravidades e condições clínicas, incluindo algumas que há pouco tempo atrás nem seriam chamadas de autismo, como dificuldades de comunicação e interação social, atitudes peculiares e comportamentos repetitivos e restritos, podendo inclusive estar associados a outros problemas psiquiátricos e neurológicos como epilepsia, déficit de atenção, hiperatividade, dificuldade intelectual, até a anomalias físicas.
Porém, nota-se que mesmo agora, anos após a mudança no critério de classificação que passou a entender o autismo como um espectro, o número de casos continua aumentando de forma impressionante, sugerindo que a explosão da prevalência não se deve unicamente ao critério de classificação mais amplo.
Nos Estados Unidos, aonde existem estatísticas confiáveis, dados apontam que um em cada 42 meninos e uma em cada 189 meninas apresenta diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo (de fato afeta mais os meninos na proporção de 4,5 meninos para uma menina). Devemos levar em conta que estes números de prevalência podem variar em diferentes contextos populacionais e ambientais, mas, não bastasse o aumento do número de casos, até a presente data, pouco se sabe sobre suas causas, apesar de muito investimento em pesquisa em mais de um século de conhecimento da condição.
A história da pesquisa do autismo está ligada à Áustria
Interessante, cinco austríacos estão entres os nomes mais importantes da história do conhecimento do autismo: Freud, Breuer, Kanner, Bettleheim e Asperger. O termo “autismo” já é conhecido desde a época em que o famoso médico neurologista austríaco Sigmund Schlomo Freud lançou ao mundo sua visão biopsicossocial do ser humano, e seu colega austríaco médico Josef Breuer descreveu pela primeira vez o termo “autismo”. Porém, naquela época, relacionando-o muito mais como um sintoma da esquizofrenia infantil do que com o que conhecemos hoje como Transtorno do Espectro do Autismo.
Décadas depois, outro austríaco, o psiquiatra infantil Leo Kanner, usou o temo “autismo” descrevendo-o como um quadro diferente da esquizofrenia infantil e chamando a atenção para o prejuízo severo na interação social que era muito evidente desde o início da vida desses pacientes.
Mais um austríaco, o pediatra Hans Asperger descreveu, em 1944, um padrão de comportamento que incluía falta de empatia, baixa capacidade de formar amizades, conversação unilateral, intenso foco em um assunto de interesse especial e movimentos descoordenados. Mas, talvez, seu maior mérito foi destacar que muitos tinham habilidades impressionantes. Chamou estes meninos de “Psicopatas Autísticos”.
O reconhecimento destes talentos especiais acabou dando mais tarde o nome à “Síndrome de Asperger”, que até pouco tempo era classificada dentre os Transtornos do Espectro do Autismo. Porém, atualmente, o termo técnico aplicado à Síndrome de Asperger é Desordem do Espectro Autista de Nível 1, ou seja, grau leve, sem a presença de prejuízos intelectuais ou verbais.
Múltiplas causas levam ao Transtorno do Espectro do Autismo
Apesar entendermos, desde longa data, que o transtorno é causado por múltiplos fatores, ainda não os conhecemos de forma clara. Este hiato de conhecimento permite que teorias sobre causas e curas mirabolantes sejam historicamente “empurradas” sobre as famílias dos afetados.
Estas tentativas ineficientes de identificar as múltiplas causas do autismo se tornaram mais notórias com a divulgação no mundo todo da “teoria da mãe geladeira”, proposta pelo próprio Leo Kanner em 1949, culpando as mães pela falta de atenção e cuidados destas crianças. Esta ideia foi reforçada por outro austríaco, o psicólogo Bruno Bettleheim. Porém, apesar da enorme contribuição, todos ignoraram o simples fato concreto que estas mesmas “mães geladeiras” têm outros filhos que nasceram antes e depois do filho autista, e que, na grande maioria das vezes, não têm autismo.
Teriam estas mães se “refrigerado” só nos cuidados ao filho autista e “se aquecido” nos cuidados dos outros filhos, incluindo os que nasceram antes do autista? Certamente não. Teorias inverossímeis persistem até os dias atuais, como “intoxicação por mercúrio”, “sequelas das vacinas”, “intolerâncias alimentares”, entre outras falácias sem nenhuma comprovação científica, mas que trazem grande prejuízo à saúde do autista, e expectativas falsas aos pais e familiares, já tão aturdidos com a complexa condição de seus filhos.
Autismo não tem cura, mas tem tratamento
Uma doença tão complexa e enigmática, que tem múltiplas causas, dificilmente será curada por uma única intervenção “mágica”. Mas não ter cura não significa que não tenha tratamento, e o mais aceito é baseado na teoria comportamental, cientificamente comprovada que, quanto mais precocemente for iniciada, melhor o prognóstico a médio e longo prazo.
Existe uma “janela de oportunidade” para início do tratamento, janela esta que diminui muito depois dos três anos de idade, e que, portanto, não pode ser desperdiçada por medo, mitos e ignorância.
Existem muitas iniciativas de pesquisa com o intuito de permitir que o diagnóstico seja feito cada vez mais cedo na vida. Uma delas vem dos esforços de décadas de um dos mais renomados cientistas mundiais em autismo, o psicólogo brasileiro Mauro (Amir) Klin, que mora nos Estados Unidos e lá desenvolveu uma metodologia científica que permite monitorar o movimento dos olhos de crianças desde os primeiros meses de vida, captando o padrão já reconhecido dos autistas de evitar o contato visual, em especial com humanos.
A segunda iniciativa trouxe seus melhores frutos este mês, baseada na dosagem de algumas substâncias no sangue das crianças, metabólitos envolvidas em processos como o estresse oxidativo e mecanismos epigenéticos (metilação do DNA). Um artigo científico que acaba de ser publicado na revista científica PLoS Comput Biol por pesquisadores do Rensselaer Polytechnic Institute in Troy, de Nova York, liderados pelo Juergen Hahn, demonstra que analisando ao mesmo tempo mais de um metabólito específico no sangue destas crianças (FOCM e TS), um alto índice de suspeição pode ser alcançado.
Estas novas ferramentas ainda não substituem, mas devem se somar aos métodos tradicionais de diagnóstico. A grande vantagem delas é que abrem a possibilidade de trazer a suspeita à tona em um momento mais precoce da infância, quando a janela de oportunidades ainda estará aberta por mais tempo, permitindo mais eficácia nas intervenções.
Um diagnóstico precoce, ou mesmo uma suspeita precoce, seguida do início imediato de terapia comportamental já no primeiro ano de vida, é o que de melhor existe no conhecimento atual para dar uma chance a uma criança autista de ter um futuro melhor e mais adaptável às exigências da sociedade em que vivemos.
Avanços na compreensão do componente genético do autismo
Há muitos anos já se acumulavam evidências de que a participação da genética entre os múltiplos fatores causais do autismo era maior do que historicamente se atribuía:
- Estudos científicos demonstravam que entre gêmeos idênticos (aqueles que compartilham o mesmo DNA), quando um tinha autismo a chance do outro ter Autismo é de 36-95%. Quando a mesma comparação era feita entre gêmeos não idênticos (não têm o mesmo DNA), quando um tinha autismo, a chance do outro ter autismo é menor, cerca de 0-31% Estes dados sugerem forte componente genético no autismo;
- Pais de um filho com autismo têm uma chance maior de ter um segundo filho com autismo, do que aquela esperada se não houvesse componente genético;
- Autismo tende a ocorrer com maior frequência em pessoas que têm uma entre centenas de condições genéticas, como nos indivíduos com Síndrome de Down, Síndrome de Rett, Esclerose Tuberosa, Síndrome de Angelman e Síndrome do X-Frágil;
- Familiares de autistas têm, com maior frequência do que a população geral, sinais mais leves do espectro do autismo.
Mas foram nos últimos 10 anos, com o fabuloso avanço das técnicas de investigação do material genético, que um número crescente e irrefutável de informações científicas aponta para uma contribuição genética em uma fração importante dos casos. Centenas de estudos genéticos se acumularam, e hoje se sabe que testes genéticos podem detectar a causa do componente genético em 10% a 40% dos casos de autismo, com taxa maior de detecção nos casos em que tecnologias de análises genéticas mais modernas são utilizadas e em casos onde o autismo está presente associado a outros problemas de saúde e sinais físicos como parte de síndromes.
O mais amplo, moderno e aprofundado estudo deste tipo acaba de ser publicado na revista científica Nature Neuroscience. Foi realizado pelo grupo de pesquisa conhecido como The Autism Speaks MSSNG Project, uma colaboração entre ONGs de pacientes e familiares (Autism Speaks), geneticistas liderados pelo Dr. Stephen Scherer (Hospital for Sick Children de Toronto, Canadá) e informatas do Google, naquele que já é considerado o maior programa de estudos genéticos em autismo no mundo. O nome do grupo – MSSNG – com a falta proposital das letras “I” que formariam a palavra de significado “desconhecido” sinaliza justamente a necessidade de se compreender as causas do autismo, acima descritas.
Este estudo demonstrou que, apesar da estimativa que variações em centenas dos 20.000 genes possam estar implicados na causa do autismo, este número ainda não é definitivo e a busca ainda não se esgotou. Analisando o DNA de 5.2015 pessoas com autismo, com a tecnologia mais profunda e moderna que a genética conhece, identificaram 18 novos genes que ainda não se sabia serem relacionados ao autismo.
Hoje podemos afirmar que existem no nosso genoma ao menos 71 genes relacionados ao autismo, e 736 genes são “candidatos” que necessitam de mais confirmação. Este número enorme de genes, confirmados e candidatos, demonstra que o Transtorno do Espectro do Autismo não é uma única entidade, mas sim, inúmeras entidades que alteram um número finito e menor de vias metabólicas e acabam causando uma síndrome composta de sinais variáveis, mas não tão heterogêneos.
Cada vez mais os pesquisadores acreditam que, ao invés de tentar corrigir os milhares de genes, um caminho menos ambicioso parece ser desenvolver medicamentos e/ou atitudes que alterem o comportamento e o meio ambiente e consigam impactar estas vias metabólicas.
O papel do médico geneticista nos cuidados do autista e seus familiares
Hoje, mais de um século depois que Breuer descreveu pela primeira vez o termo “autismo”, podemos considerar o Transtorno do Espectro do Autismo como uma desordem multifatorial do neurodesenvolvimento, com forte influência genética. Esta influência pode ser bastante diferente para cada indivíduo.
Compreender o componente genético de caso a caso pode trazer informações sobre prognóstico, conduta médica personalizada e aconselhamento genético para os familiares que pretendem ter mais filhos. Por exemplo, se um determinado casal tem um filho com autismo pela Síndrome do X-frágil, as chances de que outro filho homem venha a ter a Síndrome do X-frágil é de 50%.
Se um casal tem dois filhos com autismo não-sindrômico, a chance de um terceiro vir a ser afetado aumenta para algo em torno de 32%. Se um casal tem um filho com autismo por um erro inato do metabolismo como a Fenilcetonúria, as chances de virem a ter outros filhos com Fenilcetonúria serão de 25% em cada nova gestação.
Já se as principais causas genéticas de autismo até hoje conhecidas forem afastadas, o risco de repetição para casais que têm um único filho autista passa a ser aquele de estudos empíricos populacionais, em torno de 20%. Enfim, o papel do médico geneticista é cada vez maior nos cuidados da equipe multidisciplinar que deveria atende um autista.
No futuro, esta estratificação genética ajudará a tornar mais homogêneo os grupos de pacientes que se submeterão a pesquisa de medicamentos que possam melhorar a qualidade de vida dos autistas.
O papel do Meio Ambiente no Autismo
Caracterizar o componente genético poderá trazer luz sobre a interação entre os efeitos combinatórios entre mais de um gene conferindo predisposição ao autismo, assim como facilitar os estudos que certamente virão decifrar o papel do meio ambiente, neste que é um dos maiores enigmas da medicina atual.
Importante ressaltar que nesta definição (“desordem do neurodesenvolvimento com forte influência genética”), será fundamental decifrar a influência do meio ambiente. Mesmo não havendo ainda provas irrefutáveis de quais são as causas ambientais, estão sendo citadas cada vez mais frequentemente condições ambientais que poderiam ser responsabilizadas, ao menos em parte, pelo aumento na prevalência do Transtorno do Espectro do Autismo, tais como disfunções metabólicas da gestante (diabetes, diabetes gestacional e obesidade) e uso de determinadas drogas na gestação (antidepressivos inibidores da recaptação da serotonina, etc.).
Nem Nature, nem Nurture: O futuro das pesquisas do autismo está na epigenética!
Apesar de todos estes avanços da genética nos últimos anos, não se tem ideia dos fatores que levam a maioria dos indivíduos a ter autismo. Os genes não mudam durante a vida de uma pessoa, mas a produção de certas proteínas pelos genes pode variar de acordo com estímulos do meio ambiente, o que conhecemos por epigenética. Avanços nas pesquisas de epigenética devem ser a nova fronteira a ser desvendada, quando em breve a análise de fatores presentes no DNA já não trouxer tanta informação como ainda traz hoje.
Na busca frenética por uma melhor compreensão, esperamos que os pesquisadores encontrem um equilíbrio entre e a resposta para uma pergunta milenar: O que é mais importante, a natureza (nature, genética) ou o meio ambiente (nurture, psicologia)? Tudo indica que a resposta para esta pergunta é justamente compreender que a pergunta foi inicialmente mal formulada: são duas vias de uma mesma estrada chamada epigenética.